segunda-feira, 21 de julho de 2008

O FAUSTO DE GOETHE:A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

Fichamento

BERMAN, Marshall. O Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento, in: Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 37-84, 1986.

I

O FAUSTO DE GOETHE:

A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

· Fausto de Goethe ultrapassa todos os outros, em riqueza e profundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteligência política, em sensibilidade e percepção psicológica. Ele abre novos caminhos no emergente autoconhecimento moderno, que o mito do Fausto sempre explorou. Sua imaculada imensidão, não apenas em abrangência e ambição mas na visão genuína, levou Puchkin a chamá-lo de Ilíada da Vida moderna”. (p. 40)

· A obra, portanto, foi concebida e sendo criada ao longo de um dos períodos mais turbulentos e revolucionários da história mundial. Muito de sua força brota dessa história: o herói goethiano e as personagens a sua volta experimentam com grande intensidade muitos dos dramas e traumas da história mundial que o próprio Goethe e seus contemporâneos viveram; o movimento integral da obra reproduz o movimento mais amplo de toda a sociedade ocidental. (p. 40)

· O único meio de que o homem moderno dispõe para se transformar - Fausto e nós mesmos o veremos - é a radical transformação de todo o mundo físico, moral e social em que ele vive. A heroicidade do Fausto goethiano provém da liberação de tremendas energias humanas reprimidas, não só nele mesmo, mas em todos os que ele toca e, eventualmente, em toda a sociedade a sua volta. Porém, o grande desenvolvimento que ele inicia - intelectual, moral, econômico, social - representa um altíssimo custo para o ser humano. (p. 40-41)

PRIMEIRA METAMORFOSE: O SONHADOR

· Fausto participa de (e ajuda a criar) uma cultura que abriu uma amplitude e profundidade de desejos e sonhos humanos que se situam muito além das fronteiras clássicas e medievais. Ao mesmo, tempo, ele está inserido numa sociedade fechada e estagnada, ainda incrustada em formas sociais típicas do feudalismo e da Idade Média: formas como a orientação especializadora, que impede o seu desenvolvimento, bem como o de suas idéias. Como portador de uma cultura dinâmica em uma sociedade estagnada, ele está dividido entre vida interior e vida exterior. A cisão por mim descrita na figura do Fausto goethiano ocorre em toda a sociedade européia e será uma das fontes básicas do Romantismo internacional. Mas tem uma ressonância especial em países social, econômica e politicamente “subdesenvolvidos”.. (p. 44)

· Toda a tradição conservadora, de Burke a D. H. Lawrence, vê o desenvolvimento da indústria como uma radical negação do desenvolvimento emocional. Na visão de Goethe, porém, as rupturas psicológicas da arte e do pensamento romântico - em particular a redescoberta dos sentimentos da infância - podem liberar tremendas energias humanas, capazes de gerar amplas doses de poder e iniciativa a serem desviados para o projeto de reconstrução social. Assim, a importância da cena dos sinos para o desenvolvimento de Fausto - e do Fausto - revela a importância do projeto romântico de liberação psíquica no processo histórico da modernização. (p. 46)

· Ele sente agora a ligação entre os seus fechados e esotéricos sofrimentos e esforços e aqueles do humilde trabalhador urbano ao seu lado. (p. 46)

· Fausto anseia por destravar as fontes de toda criatividade; em vez disso, ele se encontra agora face a face com o poder de destruição. Os paradoxos vão ainda mais fundo: Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora - e, certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro - deve ser destruído, a fim de consolidar o caminho para mais criação. Essa é a dialética que o homem moderno deve apreender para viver e seguir caminhando; e é a dialética que em pouco tempo envolverá e impelirá a moderna economia, o Estado e a sociedade como um todo. (p. 48)

· O dinheiro funcionará como um do mediadores cruciais: como diz Lukács, “o dinheiro como extensão do homem, como poder sobre outros homens e circunstâncias”; “mágica ampliação do raio de ação humana por meio do dinheiro”. Fica óbvio, assim, que o capitalismo é uma das forças essenciais no desenvolvimento de Fausto. Porém, há vários temas mefistofélicos, aí, que ultrapassam o campo de ação da economia capitalista. Primeiro, a idéia evocada nos primeiros versos de que a mente e o corpo humanos, com todas as suas capacidades, estão aí para serem usados, quer como ferramentas de aplicação imediata, quer como recursos para um desenvolvimento de longo termo. Corpo e alma devem ser explorados com vistas a um máximo retorno — mas não em dinheiro, e sim, em experiência, intensidade, vida vivida, ação, criatividade”. (p. 49-50)

SEGUNDA METAMORFOSE: O AMADOR

· Fausto se assusta ao observar esse crescimento; ele não se dá conta de que é um crescimento precário, pois carece de suporte social e não tem qualquer simpatia ou confirmação a não ser da parte do próprio Fausto. A princípio, o desespero dela se manifesta através da paixão desenfreada, e ele se delicia. Porém, em pouco tempo o ardor se converte em histeria, para além do que ele pode controlar”. (p. 55).

· Porém, enquanto ele procura escapar do mundo medieval pela criação de novos valores, ela toma a sério os velhos valores e tenta realmente viver à altura deles. Embora rejeite as convenções do mundo materno como formas vazias, ela capta e agarra o espírito que subjaz a essas formas: um espírito de dedicação e empenho ativos, que tem a coragem moral de renunciar a tudo, incluindo a própria vida, em nome da fé nas suas crenças mais fundas e queridas. Fausto luta contra o velho mundo, de que ele se libertou, transformando-se em um novo tipo de pessoa, que se afirma e se conhece, que na verdade se torna ela própria através de uma auto-expansão interminável, sem descanso”. (p. 58)

· Nos dois séculos entre o tempo de Gretchen e o nosso, centenas de “pequenos mundos” serão esvaziados, transformados em conchas vazias, e seus jovens partirão na direção de grandes cidades, fronteiras mais amplas, novas nações, em busca da liberdade de pensar, amar e crescer. Ironicamente, portanto, a destruição de Gretchen pelo pequeno mundo revelará ser um momento-chave no processo de sua própria destruição. Relutante ou incapaz de se desenvolver junto com seus filhos, a cidade fechada se converterá em cidade-fantasma. Os fantasmas de suas vítimas serão abandonados com uma última gargalhada”. (p. 59)

TERCEIRA METAMORFOSE: O FOMENTADOR

· Na primeira fase, como vimos, ele vivia só e sonhava. Na segunda, ele entreteceu sua vida na de outra pessoa e aprendeu a amar. Agora, em sua última encarnação, ele conecta seus rumos pessoais com as forças econômicas, políticas e sociais que dirigem o mundo; aprende a construir e a destruir. Expande o horizonte de seu ser, da vida privada para a pública, da intimidade para o ativismo, da comunhão para a organização. Lança todos os seus poderes contra a natureza e a sociedade; luta para mudar não só a sua vida, mas a vida de todos. Assim encontra meios de agir de maneira efetiva contra o mundo feudal e patriarcal: para construir um ambiente social radicalmente novo, destinado a esvaziar de vez o velho mundo ou a destruí-lo”. (p. 59- 60)

· Fausto está se transformando em uma nova espécie de homem, para adaptar-se a uma nova situação. Em seu novo trabalho, irá experimentar algumas das mais criativas e algumas das mais destrutivas potencialidades da vida moderna; ele será o consumado destruidor e criador, a sombria e profundamente ambígua figura que nossa época virá a chamar “o fomentador””. (p. 62)

· Assim, Goethe encara a modernização do mundo material como uma sublime realização espiritual; Fausto, em sua atividade como “o Fomentador” que põe o mundo em seu passo certo, é um herói moderno arquetípico. Todavia, o fomentador, como Goethe o concebe, é não apenas heróico, mas trágico. Para compreender a tragédia do fomentador, é preciso julgar sua visão de mundo, não só pelo que ela revela — pelos imensos novos horizontes que abre para a espécie humana —, mas também pelo que ela esconde: pelas realidades humanas que se recusa a ver, pelas potencialidades que não é capaz de enfrentar”. (p. 66)

· Por que Fausto deve morrer agora? As razões oferecidas por Goethe se referem não somente à estrutura da segunda parte do Fausto, mas a toda a estrutura da história moderna. Ironicamente, assim que esse fomentador conseguiu destruir o mundo pré-moderno, destruiu também qualquer razão para continuar no mundo. Em uma sociedade por inteiro moderna, a tragédia da modernização — incluindo seu trágico herói — chega naturalmente a um fim. Tão logo se livra de todos os obstáculos no caminho, o fomentador vê a si próprio no meio do caminho e deve ser afastado”. (p. 69)

EPÍLOGO: UMA ERA FÁUSTICA E PSEUDO FÁUSTICA

· Que tragédia é essa afinal? Qual o seu verdadeiro lugar na longa história dos tempos modernos? Se tentarmos situar o tipo particular de ambiente moderno criado por Fausto, ficaremos perplexos, ao menos de início. A analogia mais imediata parece ser com o extraordinário impulso de expansão industrial vivido pela Inglaterra a partir de 1760. Lukács faz essa conexão e afirma que o último ato do Fausto é a tragédia do “desenvolvimento capitalista” em sua primeira fase industrial”. (p. 71)

· Goethe sintetiza essas idéias e deposita suas esperanças naquilo que chamarei de “modelo fáustico” de desenvolvimento. Tal modelo confere prioridade absoluta aos gigantescos projetos de energia e transporte em escala internacional. Seu objetivo é menos os lucros imediatos que o desenvolvimento a longo prazo das forças produtivas, as quais em última instância, ele acredita, gerarão os melhores resultados para todos. Em vez de deixar empresários e trabalhadores se desperdiçarem em migalhas e atividades competitivas, o modelo propõe a integração de todos. Com isso criará uma nova síntese histórica entre poder público e poder privado, simbolizada na união de Mefistófeles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Fausto, o administrador público, que concebe e dirige o trabalho como um todo”. (p. 73-74)

· O peculiar ambiente que constitui o cenário do último ato do Fausto — o imenso canteiro de obras, ampliando-se em todas as direções, em constante mudança e forçando os próprios figurantes a mudar também — tornou-se o cenário da história mundial em nosso tempo. Fausto, o Fomentador, ainda apenas um marginal no mundo de Goethe, sentir-se-ia completamente em casa no nosso mundo. Goethe apresenta um modelo de ação social em torno do qual gravitam sociedades avançadas e atrasadas, ideologias capitalistas e socialistas. Mas Goethe insiste em que se trata de uma terrível e trágica convergência, selada com o sangue das vítimas, articulada com seus ossos, que têm a mesma cor e a mesma forma em qualquer parte”. (p. 74)

· As perspectivas e visões de Goethe nos ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se Fausto é uma crítica, é também um desafio — ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe — no sentido de imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá em função do desenvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas”. (p. 84)

Escola, Estado e Sociedade


FICHAMENTO

FREITAG, Bárbara. Quadro Teórico, in: Escola, Estado e Sociedade. 4. ed. São Paulo: Moraes, pp. 15-43, 1980

  • Quanto à conceituação da educação e sua situação num contexto social, existe, em quase todos os autores, concordância em dois pontos:

1) A educação sempre expressa uma doutrina pedagógica, a qual implícita ou explicitamente se baseia em uma filosofia de vida, concepção do homem e sociedade;

2) Numa realidade social concreta, o processo educacional se dá através de instituições específicas (família, igreja, escola, comunidade) que se tornam porta-vozes de uma determinada doutrina pedagógica”. (p. 15)

  • A educação é para Durkheim o processo através do qual o egoísmo pessoal é superado e transformado em altruísmo, que beneficia a sociedade. Sem essa modificação substancial da natureza do homem individual em ser social, a sociedade não seria possível. A educação se torna assim um fator essencial e constitutivo da própria sociedade”. (p. 16)

  • Parsons, ao contrário de Durkheim, não destaca tanto o aspecto coercitivo do sistema face ao indivíduo, mas ressalta a complementaridade dos mecanismos em atuação a fim de satisfazer os requisitos do sistema social e do sistema de personalidade. Assim como o sistema tem necessidade de socializar seus membros integrantes, também o indivíduo tem necessidades que somente o sistema pode satisfazer”. (p. 17)

  • Divergem substancialmente dessa posição autores como Dewey ou Mannheim. Ambos vêem na educação não um mecanismo de correção e ajustamento dos indivíduos a estruturas societárias dadas, mas um fator de dinamização das estruturas, através do ato inovador do indivíduo”. (p. 18)

  • Assim vista, a educação exigida por Dewey vem a ser uma doutrina pedagógica específica da sociedade democrática. Educação não é simplesmente um mecanismo de perpetuação de estruturas sociais anteriores, mas um mecanismo de implantação de estruturas sociais ainda imperfeitas: as democráticas. (...) Pode haver diferenças de nível e de qualidade entre os indivíduos, mas eles as aceitam como justas porque adquiridas democraticamente”. (p. 19)

  • Assim, Mannheim, apesar de partir do objetivo final de uma sociedade democrática em pleno funcionamento, revela-se como um teórico na linha das reflexões de Dewey. É na própria experiência da vida em instituições de cunho democrático que se dá a educação para a democracia”. (p. 21)

  • As teorias educacionais até agora revistas pecam por seu alto grau de generalidade e seu extremo formalismo”. (p. 23)

  • O objetivo final, no caso de ambos os autores, é a sociedade democrática harmoniosa, em que reina a ordem e a tranqüilidade, onde conflitos e contradições encontram seus mecanismos de solução e canalização. Assim sendo, Dewey e Mannheim não diferem – quanto aos resultados finais de suas teorias – da posição a priori conservadora de Durkheim e Parsons. Pois, uma vez implantada a sociedade democrática, a função da educação se reduzirá a sua manutenção”. (p. 24)

  • Divergem fundamentalmente dessa concepção do processo educativo autores como Passeron e Bourdieu. (...) O sistema educacional é visto como uma instituição que preenche duas funções estratégicas para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura (nisso os autores coincidem com as colocações feitas por Durkheim ou Parsons) e a reprodução da estrutura de classes. Uma das funções se manifesta no mundo das “representações simbólicas” (Bourdieu) ou ideologia, a outra atua na própria realidade social”. (p. 24)

  • Bourdieu e Passeron mostram que o sistema educacional francês moderno consegue, desta maneira, desempenhar, de forma mais ajustada que o sistema tradicional, a sua dupla função de reprodução (cultural e social)”. (p. 25)

  • Parece óbvio que a sociologia da educação tem negligenciado o aspecto econômico da educação, dando origem a disciplinas paralelas como planejamento educacional e economia da educação que procuram preencher as áreas não consideradas pelas teorias educacionais até aqui recapituladas. Becker, Schultz, Edding e Slow são os pais dessas novas disciplinas que hoje orientam as decisões de muitos governos na área educacional. (...) Partem eles de uma constatação empírica que fundamenta suas reflexões teóricas: a alta correlação entre crescimento econômico e nível educacional dos membros de uma sociedade dada. (...) Desde então se vem falando em investimento em recursos humanos, formação de capital humano, formação de manpower”. (p. 27)

  • A força de trabalho não é qualificada, no interesse do trabalhador, para que melhore sua vida, se independentize e se emancipe das relações de trabalho vigentes, mas sim, par aprimorar e tornar mais eficazes essas relações, ou seja, a dependência do trabalhador em relação ao capitalista”. (p. 28-29)

  • Os modelos de economia da educação não divergem, em seus pressupostos básicos, das colocações de Durkheim e Parsons. Podemos dizer que os economistas da educação reassentaram o modelo sistêmico de Parsons em suas bases econômicas, pois a teoria do papel nele formulada consiste numa aparente troca de equivalentes”. (p. 30)

  • A economia da educação justamente ajuda a disfarçar a essência do problema subjacente a estas ideologias da igualdade de chances e da troca de equivalentes. Marx mostrou em sua teoria do valor que de fato pode haver equivalência entre duas mercadorias desde que medidas com uma unidade padrão que seja comum a ambas: o tempo médio socialmente necessário absorvido para sua produção. Por isso se pode trocar um saco de arroz por dois de feijão. A única mercadoria disponível no mercado em que a equivalência não funciona é em relação a própria força de trabalho. O seu valor de uso diverge de seu valor de troca. Pois ela, ao ser comprada no mercado por um valor, quando usada no processo de trabalho, produz mais valor do que custou ao comprador, o capitalista”. (p. 31)

  • Os modelos teóricos sistêmicos tanto de Parsons como de Becker ou Schultz descrevem, portanto, o aspecto exterior do funcionamento dos sistemas sociais. Não revelam os verdadeiros mecanismos que produzem e mantêm as estruturas de desigualdade, mas os escondem atrás de aparentes igualdades e equivalências. (...) Essa análise é feita pela primeira vez de forma exaustiva e explícita por Althusser, Poulantzas e Establet”. (p. 32)

  • É Althusser que, pela primeira vez, caracteriza a escola como “aparelho ideológico do estado” (AIE). (...) A escola contrubui, pois, de duas formas, para o processo de reprodução da formação social do capitalismo: por um lado reproduzindo as forças produtivas, por outro, as relações de produção existentes”. (p. 33)

  • Nisso se apóiam no próprio Marx, que deixou bem claro que a sociedade de classes não só é gerada, mas também reproduzida na própria esfera da produção”. (p. 34)

  • Althusser, Poulantzas e Establet fornecem um referencial teórico que realmente permite analisar, explicar e criticar o funcionamento da escola nas modernas sociedades capitalistas”. (p. 35)

  • Gramsci vai ser o autor que atribui à escola e a outras instituições da sociedade civil (ou seja, aos AIE de Althusser) essa dupla função estratégica (ou seja, a função dialética) de conservar e minar as estruturas capitalistas. (...) Uma contribuição importante de Gramsci à teoria do pensamento marxista consiste na revisão do conceito de Estado. (...) Para Gramsci a sociedade civil expressa o momento da persuasão e do consenso que, conjuntamente com o momento da repressão e da violência (sociedade política), asseguram a manutenção da estrutura de poder (Estado). Na sociedade civil a dominação se expressa sob a forma de hegemonia, na sociedade política sob a forma de ditadura”. (p. 37)

  • A função hegemônica está plenamente realizada, quando a classe no poder consegue paralisar a circulação de contra-ideologias, suscitando o consenso e a colaboração da classe oprimida que vive sua opressão como se fosse a liberdade. Nesse caso houve uma interiorização absoluta na normatividade hegemônica. (...) Por isso a estratégia política da classe oprimida deve visar também o controle da sociedade civil, com o objetivo de consolidar uma contra hegemonia”. (p. 38)

  • É nesse contexto que assume importância a concepção da sociedade civil como o lugar da circulação (livre) de ideologias. (...) Esta procurará realizar-se através das próprias instituições privadas, os AIE, refuncionalizando-os ou criando contra-instituições que divulguem a nova concepção do mundo, procurando corroer o senso comum”. (p. 39)

  • Somente ele [o esquema gramsciano] permite a conceituação de uma pedagogia do oprimido e uma educação emancipatória institucionalizada. Isso porque o referencial teórico não se limita à análise, explicação e crítica de uma sociedade historicamente estabelecida (como a sociedade do capitalismo avançado), mas oferece também os instrumentos para pensar e realizar, com o auxílio da escola e das demais instituições da sociedade civil (e em certos momentos históricos, eventualmente, a partir deles), uma nova estrutura societária”. (p. 39-40)

  • É por isso que, para Gramsci, “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”. E toda conceituação de educação é necessariamente uma estratégia política. Isso explica por que o controle do sistema educacional constitui um momento decisivo na luta de classes. (...) É por isso que o modelo gramsciano, explicitado em certos aspectos pelos althusserianos, fornece o quadro teórico referencial mais adequado para a nossa análise da política educacional brasileira”. (p. 40)

  • Podemos dizer que isso ocorreu em relação à escola e à valorização da educação como força produtiva no justo momento em que a reprodução ampliada passou a depender da força de trabalho cada vez mais qualificada”. (p. 42-43)

  • O Estado através de sua política educacional só é o ator e a causa central do funcionamento do moderno sistema de educação capitalista, aparentemente. Em verdade seu papel é o de mediador dos interesses da classe dominante. Esses interesses se concentram na base do sistema, a produção de mais-valia, ou seja, manter as relações de exploração da classe subalterna. É este o quadro referencial teórico dentro do qual procuraremos desenvolver nossa análise da política educacional brasileira da última década”. (p. 43)

PLANEJAMENTO COMO PRÁTICA EDUCATIVA

RESUMO

PLANEJAMENTO COMO PRÁTICA EDUCATIVA

O planejamento chegou a um grande descrédito por alguns motivos: A existência do “planejador” que são poucos. E se há “planejadores”, há “executores” que são uma porção e consecutivamente “avaliadores” que apontarão a direção para todo o grupo. Em todos estes casos desmerecem as o planejamento que tem a difícil função de organizar a ação sem ferir a autonomia dos participantes.

O fato de se pensar planejamento com “fábrica de idéias”, o que é uma compreensão parcial do planejamento, limita as preocupações a uma etapa, a da elaboração, deixando completamente esquecidas as etapas da execução e avaliação.

O formalismo e a burocracia que matam tudo aquilo que tocam. Os “experts” fazem-nos preencher quadrinhos e formulários e nos dizem que estamos planejando. Evidente que nem eles levam a sério aqueles papéis, mas a falta de soluções os obriga a render culto a burocracia e ao formalismo.

A falta de capacitação técnica das pessoas que “planejam”, ou mesmo coordenam a feitura dos planos, o que termina levando os planos a ineficácia.

Além disso, há também as causas externas, a relação plano e gaveta existe porque o planejamento é para mudança, para transformação, o que provavelmente não é o desejo dos “donos” de nenhum dos setores de atividade humana. Eles fazem propaganda para que creiamos em coisas, para que continuemos a agir descoordenadamente, a fim de manter o “Status Quo”.

O primeiro elemento que surge quando falamos sobre a finalidade do planejamento é a eficiência, ou seja, a execução perfeita de uma tarefa que se realiza. Mas isso não é a mais importante finalidade do planejamento. O planejamento visa à eficácia, devendo alcançar não só que se façam bem as coisas que fazem (eficiência), como também que se façam as coisas que realmente importam fazer (eficácia). Outra significativa finalidade é a compreensão do processo de planejamento como processo educativo. Esta finalidade só é alcançada quando o planejamento é concebido como uma prática que sublinhe a participação, a democracia, a liberdade.

Para iniciar a correção dos problemas recorrentes nos planejamentos é necessário fazer questionamentos em três sentidos: Durante o planejamento é preciso ter em vista a ação. A elaboração é apenas um dos processos. E que há necessidade da existência do aspecto da execução e avaliação; A função do planejamento é tornar clara e precisa a ação de organizar o que fazemos; Ter como definido e em idéia que todo autoritarismo é perigoso e que todas as pessoas que compõem o grupo devem participar de todas as etapas, aspectos ou momentos do processo.

Dentro do processo de planejamento há três perguntas básicas a serem feitas: O que queremos alcançar? Essa pergunta tem conotações diferentes dependendo da ótica a ser respondida. Na Educação ela supõe a busca de um posicionamento sempre provisório a respeito do homem e da sociedade a respeito da pedagogia; A que distância estamos daquilo que queremos alcançar? A resposta a essa questão não é essencialmente uma descrição da realidade, mas um juízo sobre ela. O essencial é o julgamento desta realidade confrontada com aquilo que queríamos que fosse; O que faremos (em tal prazo) para diminuir a distância? Superada as questões anteriores é necessário fazer a programação. Trata-se de agir na direção do que está estabelecido como ideal a partir da idéia que brotou do julgamento que se fez.

Logo, observamos que para planejar em Educação necessita-se de elaborar – decidir que tipo de sociedade e de homem se quer e que tipo de ação educacional é necessária para isso; executar – agir em conformidade com o que foi proposto e por fim avaliar – revisar cada momento e cada uma das ações, bem como cada um dos documentos derivados deles.

O importante é que, descobrindo porque não se realizam planos, aumentamos nossa condição de participarmos de um processo de planejamento que seja um processo de esclarecer e tornar precisa a ação do grupo em que estamos.

O Modernismo nas ruas

Fichamento

BERMAN, Marshall. Baudelaire: O Modernismo nas ruas, in: Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 129-165, 1986.

III

BAUDELAIRE:

O MODERNISMO NAS RUAS

  • Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao “modernismo”, encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da “modernização”, um complexo de estruturas e processos materiais - políticos, econômicos, sociais - que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (p. 129)
  • Ele [Baudelaire] aceitou o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas, suas aspirações e seu desespero. Foi, assim, capaz de conferir beleza a visões que não possuíam beleza em si, não por fazê-las romanticamente pitorescas, mas por trazer à luz a porção de alma humana ali escondida; ele pôde revelar, assim, o coração triste e muitas vezes trágico da cidade moderna. É por isso que assombrou, e continuará a assombrar, a mente do homem moderno, comovendo-o, enquanto outros artistas o deixam frio. (Banville apud Berman, 1986 / p. 130)
  • Tomemos, por exemplo, uma de suas assertivas mais famosas, de “O Pintor da Vida Moderna”: “Por ‘modernidade’ eu entendo o efêmero, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterna e imutável”. O pintor (ou romancista ou filósofo) da vida moderna é aquele que concentra sua visão e energia na “sua moda, sua moral, suas emoções”, no “instante que passa e (em) todas as sugestões de eternidade que ele contém”. Esse conceito de modernidade é concebido para romper com as antiquadas fixações clássicas que dominam a cultura francesa. “Nós, os artistas, somos acometidos de uma tendência geral a vestir todos os nossos assuntos com uma roupagem do passado”. A fé estéril de que vestimentas e gestos arcaicos produzirão verdades eternas deixa a arte francesa imobilizada em “um abismo de beleza abstrata e indeterminada” e priva-a de “originalidade”, que só pode advir do “selo que o Tempo imprime em todas as gerações”.. (p. 131)
  • Este ensaio começará com as interpretações mais simples e acríticas da modernidade, aventadas por Baudelaire: suas celebrações líricas da vida moderna, que criou formas peculiarmente modernas de pastoral; suas veementes denúncias contra a modernidade, que gerou as modernas formas antipastorais. (p. 131)

  1. MODERNISMO PASTORAL E ANTIPASTORAL

  • Baudelaire assinala o que ele sente como a criatividade inata e a universalidade de visão dos burgueses: uma vez que eles são impelidos pelo desejo de progresso na indústria e na política, estaria aquém de sua dignidade parar e aceitar a estagnação em arte. (p. 132)
  • (...) essa visão pastoral proclama a natural afinidade entre modernização material e modernização espiritual; sustenta que os grupos mais dinâmicos e inovadores na vida econômica e política serão os mais abertos à criatividade intelectual e artística — “para concretizar a idéia de futuro em todas as suas formas”; essa visão encara as mudanças econômicas e culturais como progresso humano sem obstáculos. (p. 133)
  • O ensaio de Baudelaire “O Pintor da Vida Moderna” (1859-60) apresenta uma espécie muito diferente de pastoral: aqui a vida moderna surge como um grande show de moda, um sistema de aparições deslumbrantes, brilhantes fachadas, espetaculares triunfos de decoração e estilo. (p. 133)
  • Talvez o fato mais estranho sobre a visão pastoral de Baudelaire - uma visão que tipifica seu pervertido senso de ironia, mas também sua peculiar integridade - é que ela exclui o próprio Baudelaire. Todas as dissonâncias sociais e espirituais da vida parisiense foram banidas dessas ruas. O interior turbulento de Baudelaire, sua angústia e anseios - toda a sua performance criativa ao representar aquilo que Banville chamou de “o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas, suas aspirações e seu desespero” - estão completamente fora deste mundo. (p. 134)
  • O tema antipastoral emerge pela primeira vez no ensaio de 1855, “Sobre a Moderna Idéia de Progresso Aplicada às Belas Artes”. Aqui Baudelaire se serve de uma familiar retórica reacionária para lançar desdém não só sobre a moderna idéia de progresso, mas sobre o pensamento e a vida modernos como um todo. (p. 135)
  • Baudelaire recorre a esse expediente reacionário porque está preocupado com a crescente “confusão entre ordem material e ordem espiritual”, disseminada pela epopéia do progresso.. (p. 135)
  • O dualismo pela primeira vez esboçado aqui - visão antipastoral do mundo moderno, visão pastoral do artista moderno e sua arte - se amplia e aprofunda no seu famoso ensaio de 1859, “O Público Moderno e a Fotografia”. Baudelaire começa por se queixar de que “o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada a seus fins próprios) oprime o gosto do Belo”.. (p. 136)
  • A partir do momento em que a fotografia se desenvolveu, “nossa sociedade esquálida, narcisista, correu para admirar sua imagem vulgar em uma lâmina de metal”. A consistente discussão crítica sobre a representação da realidade, levada a efeito por Baudelaire, se vê comprometida por um desprezo acrítico pelas reais pessoas modernas em seu redor. Isso o conduz novamente a uma concepção pastoral da arte: “é inútil e tedioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. (...) Àquilo que é positivamente trivial, prefiro os monstros da minha fantasia”.. (p. 137)
  • A lição, para Baudelaire, que iremos desdobrar nas partes subseqüentes deste ensaio [uma história a respeito de Balzac], é que a vida moderna possui uma beleza peculiar e autêntica, a qual, no entanto, é inseparável de sua miséria e ansiedade intrínsecas, é inseparável das contas que o homem moderno tem de pagar. Algumas páginas depois, em meio a uma crítica implacável aos modernos idiotas que se julgam capazes de progresso espiritual, ele de repente se torna sério e salta abruptamente da certeza de que a moderna idéia de progresso é ilusória para uma intensa ansiedade quanto à hipótese de esse progresso ser verdadeiro. (p. 138)

  1. O HEROÍSMO DA VIDA MODERNA

  • No geral, a vida parisiense contemporânea “é rica em assuntos poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera, mas não o vemos”. Há vários pontos importantes a observar aqui. Primeiro, o largo espectro da simpatia e generosidade de Baudelaire, muito diferente da imagem convencional de uma vanguarda snob que não tem senão desprezo pelas pessoas comuns e suas ocupações. Devemos observar, nesse contexto, que Balzac, o único artista na galeria baudelaireana de heróis modernos, não é daqueles que tratam de se manter distantes das pessoas comuns, mas, antes, mergulha mais fundo na sua vida do que qualquer artista já o havia feito antes e retorna com uma visão do anônimo heroísmo dessa vida. Por fim, é crucial observar o uso da fluidez (“existências fluidas”) e da qualidade atmosférica (“o maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera”), como símbolos das características específicas da vida moderna. Fluidez e qualidade atmosférica se tornarão atributos fundamentais na pintura, na arquitetura e no design, na música e na literatura modernistas, autoconscientes, que emergirão no fim do século XIX”. (p. 140-141)
  • Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos”. (p. 143)
  • No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: “uma prosa poética, musical mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente rude para adaptar-se aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência”. Sublinha que “esse ideal obsessivo nasceu, acima de tudo, da observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões”. O que Baudelaire procura comunicar através dessa linguagem, antes de mais nada, é aquilo que chamarei de cenas modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas estão impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da vida moderna”. (p. 144)

3. A FAMÍLIA DE OLHOS

  • Enquanto se mantêm sentados e felizes, olhos nos olhos, os amantes são surpreendidos pelos olhares de outras pessoas. Uma família de pobres, vestida com andrajos - um pai de barba grisalha, um filho jovem e um bebê - pára exatamente em frente a eles e observa, embevecida, o brilhante mundo novo, lá dentro”. (p. 145)
  • O que torna esse encontro particularmente moderno? O que o distingue de uma vasta quantidade de outras cenas parisienses, que também falam de amor e luta de classes? A diferença está no espaço urbano onde acontece nossa cena: “No fim da tarde você quis sentar-se em frente ao novo café, na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas já mostrando seus infinitos esplendores”. A diferença, em uma palavra, é o boulevard: o novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional”. (p. 145)
  • Os bulevares representam apenas uma parte do amplo sistema de planejamento urbano, que incluía mercados centrais, pontes, esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, uma grande rede de parques. “Diga-se, em tributo ao eterno crédito do barão Haussmann” - assim se expressou Robert Moses, seu mais ilustre e notório sucessor, em 1942 -, “que ele resolveu de uma vez por todas, de maneira firme e segura, o problema da modernização urbana em larga escala.” O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado”. (p. 146)
  • Talvez ele odeie essa mulher porque os olhos dela lhe revelaram uma parte de si mesmo que ele se recusa a enfrentar. Talvez a maior divisão não se dê entre o narrador e sua amante, mas dentro do próprio homem. Se assim é, isso nos mostra como as contradições que animam a cidade moderna ressoam na vida interior do homem na rua”. (p. 150)
  • Só a mais radical reconstrução da sociedade moderna poderia começar a cicatrizar as feridas - feridas pessoais e sociais - que os bulevares trouxeram à luz. Assim mesmo, a solução radical muito freqüentemente vem a ser dissolução: pôr abaixo os bulevares, apagar as luzes brilhantes, expelir e recolocar as pessoas, eliminar as fontes de beleza e alegria que a cidade moderna trouxe à existência. Devemos esperar, como Baudelaire às vezes esperou, por um futuro em que a alegria e a beleza, como as luzes da cidade, venham a ser partilhadas por todos. Mas nossa esperança tende a ser diluída pela tristeza auto-irônica que permeia o ar da cidade de Baudelaire”. (p. 150)

4. O LODAÇAL DE MACADAME

  • “A Perda do Halo” se desenvolve na forma de diálogo entre um poeta e um “homem comum”, diálogo que se trava em un mauvais lieu, um lugar sinistro ou de má reputação, talvez um bordel, para embaraço de ambos. O homem comum, que sempre alimentara uma idéia elevada do artista, sente-se frustrado ao encontrar um deles em tal lugar”. (p. 150)
  • “A Perda do Halo” se dá em um ponto para o qual convergem o mundo da arte e o mundo comum. E não se trata de um ponto apenas espiritual, mas físico, um determinado ponto na paisagem da cidade moderna. É o ponto em que a história da modernização e a história do modernismo se fundem em um só”. (p. 152).
  • Como David Pinkney mostra, em seu excelente estudo Napoleão III e a Reconstrução de Paris, os bulevares arteriais “foram desde o início sobrecarregados com uma dupla função: dar vazão aos fluxos mais intensos de tráfego através da cidade e servir de principais ruas de comércio e negócios; à medida que o volume de tráfego crescia, as duas funções se mostraram incompatíveis”. A situação era especialmente desafiadora e ameaçadora para a vasta maioria dos parisienses que caminhavam”. (p. 153)
  • Baudelaire mostra como a vida na cidade moderna força cada um a realizar esses novos movimentos; mas mostra também como, assim procedendo, a cidade moderna desencadeia novas formas de liberdade. Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego pode ir a qualquer parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores urbanos onde o próprio tráfego se move livremente. Essa mobilidade abre um enorme leque de experiências e atividades para as massas urbanas”. (p. 154-155)
  • As ironias proliferam nessa cena moderna primordial, disfarçadas sob as nuanças da linguagem de Baudelaire. Considere-se uma frase como la fange de macadam, “o lodaçal de macadame”. La fange, em francês, é não só a palavra literal para lodo, lama, mas também a palavra figurada para insídia, baixeza, torpeza, corrupção, degradação, tudo quanto seja abominável e repugnante. Na dicção oratória e poética clássica, trata-se de uma forma “elevada” de descrever algo “baixo””. (p. 155-156)
  • Então, não importa quão acirradamente o antimodernista possa apegar-se à sua aura de pureza espiritual, ele também tenderá a perdê-la, mais provavelmente cedo do que tarde, pelas mesmas razões que levaram o modernista a perdê-la: ele será forçado a se desfazer do equilíbrio, das mesuras e do decoro e a aprender a graça dos movimentos bruscos para sobreviver. Mais uma vez, não importa quão opostos o modernista e o antimodernista julguem ser: no lodaçal de macadame e segundo o ponto de vista do tráfego interminável, eles são um só”. (p. 157)
  • Por um breve momento, o caótico modernismo de bruscos movimentos solitários cede lugar a um ordenado modernismo de movimento de massa. O “heroísmo da vida moderna”, que Baudelaire almejou ver, nascera de sua cena primordial na rua. Baudelaire não espera que esta, ou qualquer outra, nova vida perdure. Mas ela renascerá e continuará a renascer das contradições internas da rua. Essa possibilidade é um relance vital de esperança para o espírito do homem no lodaçal de macadame, no caos, batendo em retirada”. (p. 158-159)

  1. O SÉCULO XX: O HALO E A RODOVIA
  • Em nenhuma parte esse desenvolvimento é mais claro do que no âmbito do espaço urbano. Se tivermos em mente os mais recentes complexos espaciais urbanos que pudermos imaginar - todos aqueles que foram implementados, digamos, desde o fim da Segunda Grande Guerra, incluindo os novos bairros urbanos e as novas cidades -, será difícil admitir que os encontros primordiais de Baudelaire possam ocorrer aí. Isso não acontece por acaso: de fato, ao longo de quase todo o século, espaços urbanos têm sido sistematicamente planejados e organizados para assegurar-nos de que confrontos e colisões serão evitados”. (p. 159)
  • Como pode o espírito sobreviver a esse tipo de mudança? Baudelaire mostrou um caminho: transformar os mouvements brusques e os soubresauts da vida na cidade moderna nos gestos paradigmáticos de uma nova arte capaz de reunir os homens modernos. No extremo limite da imaginação de Baudelaire, divisamos outro modernismo potencial: o protesto revolucionário que transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para vida humana. Le Corbusier apresentará uma terceira estratégia que conduzirá a outro e extremamente poderoso tipo de modernismo. Depois de abrir caminho através do tráfego, mal tendo sobrevivido, ele dá um salto súbito e ousado: identifica-se por inteiro com as forças que o estavam pressionando”. (p. 160)
  • A perspectiva do novo homem no carro gerará os paradigmas do planejamento e design urbanos do século XX. O novo homem, diz Le Corbusier, precisa de “outro tipo de rua”, que será “uma máquina para o tráfego”, ou, para variar a metáfora básica, “uma fábrica para produzir tráfego”. Uma rua verdadeiramente moderna precisa ser “bem equipada como uma fábrica””. (p. 161)
  • Essa espécie de modernismo deixou marcas profundas nas nossas vidas. O desenvolvimento das cidades nos últimos quarenta anos, tanto nos países capitalistas como nos socialistas, combateu de forma sistemática, e em muitos casos conseguiu eliminar, o “caos” da vida urbana do século XIX”. (p. 162)
  • Em curiosa correspondência com esse achatamento da paisagem urbana, o século XX produziu também um desolador achatamento do pensamento social. O pensamento sério sobre a vida moderna polarizou-se em duas antíteses estéreis, que podem ser chamadas, como sugeri antes, “modernolatria” e “desespero cultural””. (p. 163)
  • É irônico que, tanto na teoria como na prática, a mistificação da vida moderna, bem como a destruição de algumas das suas mais atraentes possibilidades, tenha sido levada a termo em nome do próprio modernismo em progresso. No entanto, a despeito de tudo, o velho caos manteve - ou talvez renovou - sua influência sobre muitos de nós. O urbanismo das duas últimas décadas conceptualizou e consolidou essa influência”. (p. 164)
  • Tudo isso sugere que o modernismo contém suas próprias contradições e tensões dialéticas interiores; que determinadas formas de pensamento e visão modernistas podem solidificar-se em ortodoxias dogmáticas e tornar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem ficar submersas por gerações, sem chegar a ser suplantadas; e que as mais fundas feridas sociais e psíquicas da modernidade podem ser indefinidamente tampadas, sem chegar a cicatrizar de fato”. (p. 165)