segunda-feira, 21 de julho de 2008

O Modernismo nas ruas

Fichamento

BERMAN, Marshall. Baudelaire: O Modernismo nas ruas, in: Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 129-165, 1986.

III

BAUDELAIRE:

O MODERNISMO NAS RUAS

  • Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao “modernismo”, encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da “modernização”, um complexo de estruturas e processos materiais - políticos, econômicos, sociais - que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (p. 129)
  • Ele [Baudelaire] aceitou o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas, suas aspirações e seu desespero. Foi, assim, capaz de conferir beleza a visões que não possuíam beleza em si, não por fazê-las romanticamente pitorescas, mas por trazer à luz a porção de alma humana ali escondida; ele pôde revelar, assim, o coração triste e muitas vezes trágico da cidade moderna. É por isso que assombrou, e continuará a assombrar, a mente do homem moderno, comovendo-o, enquanto outros artistas o deixam frio. (Banville apud Berman, 1986 / p. 130)
  • Tomemos, por exemplo, uma de suas assertivas mais famosas, de “O Pintor da Vida Moderna”: “Por ‘modernidade’ eu entendo o efêmero, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterna e imutável”. O pintor (ou romancista ou filósofo) da vida moderna é aquele que concentra sua visão e energia na “sua moda, sua moral, suas emoções”, no “instante que passa e (em) todas as sugestões de eternidade que ele contém”. Esse conceito de modernidade é concebido para romper com as antiquadas fixações clássicas que dominam a cultura francesa. “Nós, os artistas, somos acometidos de uma tendência geral a vestir todos os nossos assuntos com uma roupagem do passado”. A fé estéril de que vestimentas e gestos arcaicos produzirão verdades eternas deixa a arte francesa imobilizada em “um abismo de beleza abstrata e indeterminada” e priva-a de “originalidade”, que só pode advir do “selo que o Tempo imprime em todas as gerações”.. (p. 131)
  • Este ensaio começará com as interpretações mais simples e acríticas da modernidade, aventadas por Baudelaire: suas celebrações líricas da vida moderna, que criou formas peculiarmente modernas de pastoral; suas veementes denúncias contra a modernidade, que gerou as modernas formas antipastorais. (p. 131)

  1. MODERNISMO PASTORAL E ANTIPASTORAL

  • Baudelaire assinala o que ele sente como a criatividade inata e a universalidade de visão dos burgueses: uma vez que eles são impelidos pelo desejo de progresso na indústria e na política, estaria aquém de sua dignidade parar e aceitar a estagnação em arte. (p. 132)
  • (...) essa visão pastoral proclama a natural afinidade entre modernização material e modernização espiritual; sustenta que os grupos mais dinâmicos e inovadores na vida econômica e política serão os mais abertos à criatividade intelectual e artística — “para concretizar a idéia de futuro em todas as suas formas”; essa visão encara as mudanças econômicas e culturais como progresso humano sem obstáculos. (p. 133)
  • O ensaio de Baudelaire “O Pintor da Vida Moderna” (1859-60) apresenta uma espécie muito diferente de pastoral: aqui a vida moderna surge como um grande show de moda, um sistema de aparições deslumbrantes, brilhantes fachadas, espetaculares triunfos de decoração e estilo. (p. 133)
  • Talvez o fato mais estranho sobre a visão pastoral de Baudelaire - uma visão que tipifica seu pervertido senso de ironia, mas também sua peculiar integridade - é que ela exclui o próprio Baudelaire. Todas as dissonâncias sociais e espirituais da vida parisiense foram banidas dessas ruas. O interior turbulento de Baudelaire, sua angústia e anseios - toda a sua performance criativa ao representar aquilo que Banville chamou de “o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas, suas aspirações e seu desespero” - estão completamente fora deste mundo. (p. 134)
  • O tema antipastoral emerge pela primeira vez no ensaio de 1855, “Sobre a Moderna Idéia de Progresso Aplicada às Belas Artes”. Aqui Baudelaire se serve de uma familiar retórica reacionária para lançar desdém não só sobre a moderna idéia de progresso, mas sobre o pensamento e a vida modernos como um todo. (p. 135)
  • Baudelaire recorre a esse expediente reacionário porque está preocupado com a crescente “confusão entre ordem material e ordem espiritual”, disseminada pela epopéia do progresso.. (p. 135)
  • O dualismo pela primeira vez esboçado aqui - visão antipastoral do mundo moderno, visão pastoral do artista moderno e sua arte - se amplia e aprofunda no seu famoso ensaio de 1859, “O Público Moderno e a Fotografia”. Baudelaire começa por se queixar de que “o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada a seus fins próprios) oprime o gosto do Belo”.. (p. 136)
  • A partir do momento em que a fotografia se desenvolveu, “nossa sociedade esquálida, narcisista, correu para admirar sua imagem vulgar em uma lâmina de metal”. A consistente discussão crítica sobre a representação da realidade, levada a efeito por Baudelaire, se vê comprometida por um desprezo acrítico pelas reais pessoas modernas em seu redor. Isso o conduz novamente a uma concepção pastoral da arte: “é inútil e tedioso representar o que existe, porque nada do que existe me satisfaz. (...) Àquilo que é positivamente trivial, prefiro os monstros da minha fantasia”.. (p. 137)
  • A lição, para Baudelaire, que iremos desdobrar nas partes subseqüentes deste ensaio [uma história a respeito de Balzac], é que a vida moderna possui uma beleza peculiar e autêntica, a qual, no entanto, é inseparável de sua miséria e ansiedade intrínsecas, é inseparável das contas que o homem moderno tem de pagar. Algumas páginas depois, em meio a uma crítica implacável aos modernos idiotas que se julgam capazes de progresso espiritual, ele de repente se torna sério e salta abruptamente da certeza de que a moderna idéia de progresso é ilusória para uma intensa ansiedade quanto à hipótese de esse progresso ser verdadeiro. (p. 138)

  1. O HEROÍSMO DA VIDA MODERNA

  • No geral, a vida parisiense contemporânea “é rica em assuntos poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera, mas não o vemos”. Há vários pontos importantes a observar aqui. Primeiro, o largo espectro da simpatia e generosidade de Baudelaire, muito diferente da imagem convencional de uma vanguarda snob que não tem senão desprezo pelas pessoas comuns e suas ocupações. Devemos observar, nesse contexto, que Balzac, o único artista na galeria baudelaireana de heróis modernos, não é daqueles que tratam de se manter distantes das pessoas comuns, mas, antes, mergulha mais fundo na sua vida do que qualquer artista já o havia feito antes e retorna com uma visão do anônimo heroísmo dessa vida. Por fim, é crucial observar o uso da fluidez (“existências fluidas”) e da qualidade atmosférica (“o maravilhoso nos envolve e nos embebe como uma atmosfera”), como símbolos das características específicas da vida moderna. Fluidez e qualidade atmosférica se tornarão atributos fundamentais na pintura, na arquitetura e no design, na música e na literatura modernistas, autoconscientes, que emergirão no fim do século XIX”. (p. 140-141)
  • Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos”. (p. 143)
  • No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: “uma prosa poética, musical mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente rude para adaptar-se aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência”. Sublinha que “esse ideal obsessivo nasceu, acima de tudo, da observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões”. O que Baudelaire procura comunicar através dessa linguagem, antes de mais nada, é aquilo que chamarei de cenas modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas estão impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da vida moderna”. (p. 144)

3. A FAMÍLIA DE OLHOS

  • Enquanto se mantêm sentados e felizes, olhos nos olhos, os amantes são surpreendidos pelos olhares de outras pessoas. Uma família de pobres, vestida com andrajos - um pai de barba grisalha, um filho jovem e um bebê - pára exatamente em frente a eles e observa, embevecida, o brilhante mundo novo, lá dentro”. (p. 145)
  • O que torna esse encontro particularmente moderno? O que o distingue de uma vasta quantidade de outras cenas parisienses, que também falam de amor e luta de classes? A diferença está no espaço urbano onde acontece nossa cena: “No fim da tarde você quis sentar-se em frente ao novo café, na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas já mostrando seus infinitos esplendores”. A diferença, em uma palavra, é o boulevard: o novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional”. (p. 145)
  • Os bulevares representam apenas uma parte do amplo sistema de planejamento urbano, que incluía mercados centrais, pontes, esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, uma grande rede de parques. “Diga-se, em tributo ao eterno crédito do barão Haussmann” - assim se expressou Robert Moses, seu mais ilustre e notório sucessor, em 1942 -, “que ele resolveu de uma vez por todas, de maneira firme e segura, o problema da modernização urbana em larga escala.” O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado”. (p. 146)
  • Talvez ele odeie essa mulher porque os olhos dela lhe revelaram uma parte de si mesmo que ele se recusa a enfrentar. Talvez a maior divisão não se dê entre o narrador e sua amante, mas dentro do próprio homem. Se assim é, isso nos mostra como as contradições que animam a cidade moderna ressoam na vida interior do homem na rua”. (p. 150)
  • Só a mais radical reconstrução da sociedade moderna poderia começar a cicatrizar as feridas - feridas pessoais e sociais - que os bulevares trouxeram à luz. Assim mesmo, a solução radical muito freqüentemente vem a ser dissolução: pôr abaixo os bulevares, apagar as luzes brilhantes, expelir e recolocar as pessoas, eliminar as fontes de beleza e alegria que a cidade moderna trouxe à existência. Devemos esperar, como Baudelaire às vezes esperou, por um futuro em que a alegria e a beleza, como as luzes da cidade, venham a ser partilhadas por todos. Mas nossa esperança tende a ser diluída pela tristeza auto-irônica que permeia o ar da cidade de Baudelaire”. (p. 150)

4. O LODAÇAL DE MACADAME

  • “A Perda do Halo” se desenvolve na forma de diálogo entre um poeta e um “homem comum”, diálogo que se trava em un mauvais lieu, um lugar sinistro ou de má reputação, talvez um bordel, para embaraço de ambos. O homem comum, que sempre alimentara uma idéia elevada do artista, sente-se frustrado ao encontrar um deles em tal lugar”. (p. 150)
  • “A Perda do Halo” se dá em um ponto para o qual convergem o mundo da arte e o mundo comum. E não se trata de um ponto apenas espiritual, mas físico, um determinado ponto na paisagem da cidade moderna. É o ponto em que a história da modernização e a história do modernismo se fundem em um só”. (p. 152).
  • Como David Pinkney mostra, em seu excelente estudo Napoleão III e a Reconstrução de Paris, os bulevares arteriais “foram desde o início sobrecarregados com uma dupla função: dar vazão aos fluxos mais intensos de tráfego através da cidade e servir de principais ruas de comércio e negócios; à medida que o volume de tráfego crescia, as duas funções se mostraram incompatíveis”. A situação era especialmente desafiadora e ameaçadora para a vasta maioria dos parisienses que caminhavam”. (p. 153)
  • Baudelaire mostra como a vida na cidade moderna força cada um a realizar esses novos movimentos; mas mostra também como, assim procedendo, a cidade moderna desencadeia novas formas de liberdade. Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego pode ir a qualquer parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores urbanos onde o próprio tráfego se move livremente. Essa mobilidade abre um enorme leque de experiências e atividades para as massas urbanas”. (p. 154-155)
  • As ironias proliferam nessa cena moderna primordial, disfarçadas sob as nuanças da linguagem de Baudelaire. Considere-se uma frase como la fange de macadam, “o lodaçal de macadame”. La fange, em francês, é não só a palavra literal para lodo, lama, mas também a palavra figurada para insídia, baixeza, torpeza, corrupção, degradação, tudo quanto seja abominável e repugnante. Na dicção oratória e poética clássica, trata-se de uma forma “elevada” de descrever algo “baixo””. (p. 155-156)
  • Então, não importa quão acirradamente o antimodernista possa apegar-se à sua aura de pureza espiritual, ele também tenderá a perdê-la, mais provavelmente cedo do que tarde, pelas mesmas razões que levaram o modernista a perdê-la: ele será forçado a se desfazer do equilíbrio, das mesuras e do decoro e a aprender a graça dos movimentos bruscos para sobreviver. Mais uma vez, não importa quão opostos o modernista e o antimodernista julguem ser: no lodaçal de macadame e segundo o ponto de vista do tráfego interminável, eles são um só”. (p. 157)
  • Por um breve momento, o caótico modernismo de bruscos movimentos solitários cede lugar a um ordenado modernismo de movimento de massa. O “heroísmo da vida moderna”, que Baudelaire almejou ver, nascera de sua cena primordial na rua. Baudelaire não espera que esta, ou qualquer outra, nova vida perdure. Mas ela renascerá e continuará a renascer das contradições internas da rua. Essa possibilidade é um relance vital de esperança para o espírito do homem no lodaçal de macadame, no caos, batendo em retirada”. (p. 158-159)

  1. O SÉCULO XX: O HALO E A RODOVIA
  • Em nenhuma parte esse desenvolvimento é mais claro do que no âmbito do espaço urbano. Se tivermos em mente os mais recentes complexos espaciais urbanos que pudermos imaginar - todos aqueles que foram implementados, digamos, desde o fim da Segunda Grande Guerra, incluindo os novos bairros urbanos e as novas cidades -, será difícil admitir que os encontros primordiais de Baudelaire possam ocorrer aí. Isso não acontece por acaso: de fato, ao longo de quase todo o século, espaços urbanos têm sido sistematicamente planejados e organizados para assegurar-nos de que confrontos e colisões serão evitados”. (p. 159)
  • Como pode o espírito sobreviver a esse tipo de mudança? Baudelaire mostrou um caminho: transformar os mouvements brusques e os soubresauts da vida na cidade moderna nos gestos paradigmáticos de uma nova arte capaz de reunir os homens modernos. No extremo limite da imaginação de Baudelaire, divisamos outro modernismo potencial: o protesto revolucionário que transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para vida humana. Le Corbusier apresentará uma terceira estratégia que conduzirá a outro e extremamente poderoso tipo de modernismo. Depois de abrir caminho através do tráfego, mal tendo sobrevivido, ele dá um salto súbito e ousado: identifica-se por inteiro com as forças que o estavam pressionando”. (p. 160)
  • A perspectiva do novo homem no carro gerará os paradigmas do planejamento e design urbanos do século XX. O novo homem, diz Le Corbusier, precisa de “outro tipo de rua”, que será “uma máquina para o tráfego”, ou, para variar a metáfora básica, “uma fábrica para produzir tráfego”. Uma rua verdadeiramente moderna precisa ser “bem equipada como uma fábrica””. (p. 161)
  • Essa espécie de modernismo deixou marcas profundas nas nossas vidas. O desenvolvimento das cidades nos últimos quarenta anos, tanto nos países capitalistas como nos socialistas, combateu de forma sistemática, e em muitos casos conseguiu eliminar, o “caos” da vida urbana do século XIX”. (p. 162)
  • Em curiosa correspondência com esse achatamento da paisagem urbana, o século XX produziu também um desolador achatamento do pensamento social. O pensamento sério sobre a vida moderna polarizou-se em duas antíteses estéreis, que podem ser chamadas, como sugeri antes, “modernolatria” e “desespero cultural””. (p. 163)
  • É irônico que, tanto na teoria como na prática, a mistificação da vida moderna, bem como a destruição de algumas das suas mais atraentes possibilidades, tenha sido levada a termo em nome do próprio modernismo em progresso. No entanto, a despeito de tudo, o velho caos manteve - ou talvez renovou - sua influência sobre muitos de nós. O urbanismo das duas últimas décadas conceptualizou e consolidou essa influência”. (p. 164)
  • Tudo isso sugere que o modernismo contém suas próprias contradições e tensões dialéticas interiores; que determinadas formas de pensamento e visão modernistas podem solidificar-se em ortodoxias dogmáticas e tornar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem ficar submersas por gerações, sem chegar a ser suplantadas; e que as mais fundas feridas sociais e psíquicas da modernidade podem ser indefinidamente tampadas, sem chegar a cicatrizar de fato”. (p. 165)

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