segunda-feira, 21 de julho de 2008

O FAUSTO DE GOETHE:A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

Fichamento

BERMAN, Marshall. O Fausto de Goethe: a tragédia do desenvolvimento, in: Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 37-84, 1986.

I

O FAUSTO DE GOETHE:

A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

· Fausto de Goethe ultrapassa todos os outros, em riqueza e profundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteligência política, em sensibilidade e percepção psicológica. Ele abre novos caminhos no emergente autoconhecimento moderno, que o mito do Fausto sempre explorou. Sua imaculada imensidão, não apenas em abrangência e ambição mas na visão genuína, levou Puchkin a chamá-lo de Ilíada da Vida moderna”. (p. 40)

· A obra, portanto, foi concebida e sendo criada ao longo de um dos períodos mais turbulentos e revolucionários da história mundial. Muito de sua força brota dessa história: o herói goethiano e as personagens a sua volta experimentam com grande intensidade muitos dos dramas e traumas da história mundial que o próprio Goethe e seus contemporâneos viveram; o movimento integral da obra reproduz o movimento mais amplo de toda a sociedade ocidental. (p. 40)

· O único meio de que o homem moderno dispõe para se transformar - Fausto e nós mesmos o veremos - é a radical transformação de todo o mundo físico, moral e social em que ele vive. A heroicidade do Fausto goethiano provém da liberação de tremendas energias humanas reprimidas, não só nele mesmo, mas em todos os que ele toca e, eventualmente, em toda a sociedade a sua volta. Porém, o grande desenvolvimento que ele inicia - intelectual, moral, econômico, social - representa um altíssimo custo para o ser humano. (p. 40-41)

PRIMEIRA METAMORFOSE: O SONHADOR

· Fausto participa de (e ajuda a criar) uma cultura que abriu uma amplitude e profundidade de desejos e sonhos humanos que se situam muito além das fronteiras clássicas e medievais. Ao mesmo, tempo, ele está inserido numa sociedade fechada e estagnada, ainda incrustada em formas sociais típicas do feudalismo e da Idade Média: formas como a orientação especializadora, que impede o seu desenvolvimento, bem como o de suas idéias. Como portador de uma cultura dinâmica em uma sociedade estagnada, ele está dividido entre vida interior e vida exterior. A cisão por mim descrita na figura do Fausto goethiano ocorre em toda a sociedade européia e será uma das fontes básicas do Romantismo internacional. Mas tem uma ressonância especial em países social, econômica e politicamente “subdesenvolvidos”.. (p. 44)

· Toda a tradição conservadora, de Burke a D. H. Lawrence, vê o desenvolvimento da indústria como uma radical negação do desenvolvimento emocional. Na visão de Goethe, porém, as rupturas psicológicas da arte e do pensamento romântico - em particular a redescoberta dos sentimentos da infância - podem liberar tremendas energias humanas, capazes de gerar amplas doses de poder e iniciativa a serem desviados para o projeto de reconstrução social. Assim, a importância da cena dos sinos para o desenvolvimento de Fausto - e do Fausto - revela a importância do projeto romântico de liberação psíquica no processo histórico da modernização. (p. 46)

· Ele sente agora a ligação entre os seus fechados e esotéricos sofrimentos e esforços e aqueles do humilde trabalhador urbano ao seu lado. (p. 46)

· Fausto anseia por destravar as fontes de toda criatividade; em vez disso, ele se encontra agora face a face com o poder de destruição. Os paradoxos vão ainda mais fundo: Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora - e, certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro - deve ser destruído, a fim de consolidar o caminho para mais criação. Essa é a dialética que o homem moderno deve apreender para viver e seguir caminhando; e é a dialética que em pouco tempo envolverá e impelirá a moderna economia, o Estado e a sociedade como um todo. (p. 48)

· O dinheiro funcionará como um do mediadores cruciais: como diz Lukács, “o dinheiro como extensão do homem, como poder sobre outros homens e circunstâncias”; “mágica ampliação do raio de ação humana por meio do dinheiro”. Fica óbvio, assim, que o capitalismo é uma das forças essenciais no desenvolvimento de Fausto. Porém, há vários temas mefistofélicos, aí, que ultrapassam o campo de ação da economia capitalista. Primeiro, a idéia evocada nos primeiros versos de que a mente e o corpo humanos, com todas as suas capacidades, estão aí para serem usados, quer como ferramentas de aplicação imediata, quer como recursos para um desenvolvimento de longo termo. Corpo e alma devem ser explorados com vistas a um máximo retorno — mas não em dinheiro, e sim, em experiência, intensidade, vida vivida, ação, criatividade”. (p. 49-50)

SEGUNDA METAMORFOSE: O AMADOR

· Fausto se assusta ao observar esse crescimento; ele não se dá conta de que é um crescimento precário, pois carece de suporte social e não tem qualquer simpatia ou confirmação a não ser da parte do próprio Fausto. A princípio, o desespero dela se manifesta através da paixão desenfreada, e ele se delicia. Porém, em pouco tempo o ardor se converte em histeria, para além do que ele pode controlar”. (p. 55).

· Porém, enquanto ele procura escapar do mundo medieval pela criação de novos valores, ela toma a sério os velhos valores e tenta realmente viver à altura deles. Embora rejeite as convenções do mundo materno como formas vazias, ela capta e agarra o espírito que subjaz a essas formas: um espírito de dedicação e empenho ativos, que tem a coragem moral de renunciar a tudo, incluindo a própria vida, em nome da fé nas suas crenças mais fundas e queridas. Fausto luta contra o velho mundo, de que ele se libertou, transformando-se em um novo tipo de pessoa, que se afirma e se conhece, que na verdade se torna ela própria através de uma auto-expansão interminável, sem descanso”. (p. 58)

· Nos dois séculos entre o tempo de Gretchen e o nosso, centenas de “pequenos mundos” serão esvaziados, transformados em conchas vazias, e seus jovens partirão na direção de grandes cidades, fronteiras mais amplas, novas nações, em busca da liberdade de pensar, amar e crescer. Ironicamente, portanto, a destruição de Gretchen pelo pequeno mundo revelará ser um momento-chave no processo de sua própria destruição. Relutante ou incapaz de se desenvolver junto com seus filhos, a cidade fechada se converterá em cidade-fantasma. Os fantasmas de suas vítimas serão abandonados com uma última gargalhada”. (p. 59)

TERCEIRA METAMORFOSE: O FOMENTADOR

· Na primeira fase, como vimos, ele vivia só e sonhava. Na segunda, ele entreteceu sua vida na de outra pessoa e aprendeu a amar. Agora, em sua última encarnação, ele conecta seus rumos pessoais com as forças econômicas, políticas e sociais que dirigem o mundo; aprende a construir e a destruir. Expande o horizonte de seu ser, da vida privada para a pública, da intimidade para o ativismo, da comunhão para a organização. Lança todos os seus poderes contra a natureza e a sociedade; luta para mudar não só a sua vida, mas a vida de todos. Assim encontra meios de agir de maneira efetiva contra o mundo feudal e patriarcal: para construir um ambiente social radicalmente novo, destinado a esvaziar de vez o velho mundo ou a destruí-lo”. (p. 59- 60)

· Fausto está se transformando em uma nova espécie de homem, para adaptar-se a uma nova situação. Em seu novo trabalho, irá experimentar algumas das mais criativas e algumas das mais destrutivas potencialidades da vida moderna; ele será o consumado destruidor e criador, a sombria e profundamente ambígua figura que nossa época virá a chamar “o fomentador””. (p. 62)

· Assim, Goethe encara a modernização do mundo material como uma sublime realização espiritual; Fausto, em sua atividade como “o Fomentador” que põe o mundo em seu passo certo, é um herói moderno arquetípico. Todavia, o fomentador, como Goethe o concebe, é não apenas heróico, mas trágico. Para compreender a tragédia do fomentador, é preciso julgar sua visão de mundo, não só pelo que ela revela — pelos imensos novos horizontes que abre para a espécie humana —, mas também pelo que ela esconde: pelas realidades humanas que se recusa a ver, pelas potencialidades que não é capaz de enfrentar”. (p. 66)

· Por que Fausto deve morrer agora? As razões oferecidas por Goethe se referem não somente à estrutura da segunda parte do Fausto, mas a toda a estrutura da história moderna. Ironicamente, assim que esse fomentador conseguiu destruir o mundo pré-moderno, destruiu também qualquer razão para continuar no mundo. Em uma sociedade por inteiro moderna, a tragédia da modernização — incluindo seu trágico herói — chega naturalmente a um fim. Tão logo se livra de todos os obstáculos no caminho, o fomentador vê a si próprio no meio do caminho e deve ser afastado”. (p. 69)

EPÍLOGO: UMA ERA FÁUSTICA E PSEUDO FÁUSTICA

· Que tragédia é essa afinal? Qual o seu verdadeiro lugar na longa história dos tempos modernos? Se tentarmos situar o tipo particular de ambiente moderno criado por Fausto, ficaremos perplexos, ao menos de início. A analogia mais imediata parece ser com o extraordinário impulso de expansão industrial vivido pela Inglaterra a partir de 1760. Lukács faz essa conexão e afirma que o último ato do Fausto é a tragédia do “desenvolvimento capitalista” em sua primeira fase industrial”. (p. 71)

· Goethe sintetiza essas idéias e deposita suas esperanças naquilo que chamarei de “modelo fáustico” de desenvolvimento. Tal modelo confere prioridade absoluta aos gigantescos projetos de energia e transporte em escala internacional. Seu objetivo é menos os lucros imediatos que o desenvolvimento a longo prazo das forças produtivas, as quais em última instância, ele acredita, gerarão os melhores resultados para todos. Em vez de deixar empresários e trabalhadores se desperdiçarem em migalhas e atividades competitivas, o modelo propõe a integração de todos. Com isso criará uma nova síntese histórica entre poder público e poder privado, simbolizada na união de Mefistófeles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Fausto, o administrador público, que concebe e dirige o trabalho como um todo”. (p. 73-74)

· O peculiar ambiente que constitui o cenário do último ato do Fausto — o imenso canteiro de obras, ampliando-se em todas as direções, em constante mudança e forçando os próprios figurantes a mudar também — tornou-se o cenário da história mundial em nosso tempo. Fausto, o Fomentador, ainda apenas um marginal no mundo de Goethe, sentir-se-ia completamente em casa no nosso mundo. Goethe apresenta um modelo de ação social em torno do qual gravitam sociedades avançadas e atrasadas, ideologias capitalistas e socialistas. Mas Goethe insiste em que se trata de uma terrível e trágica convergência, selada com o sangue das vítimas, articulada com seus ossos, que têm a mesma cor e a mesma forma em qualquer parte”. (p. 74)

· As perspectivas e visões de Goethe nos ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se Fausto é uma crítica, é também um desafio — ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe — no sentido de imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá em função do desenvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas”. (p. 84)

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